( Legendo só a última fotografia - este era um tanque de água próximo do quartel onde vínhamos tomar banho no verão na esperança de vermos também umas miúdas que por lá apareciam de vez em quando)
Por vezes basta uma palavra, um encontro com uma pessoa ou o regresso a um lugar, para que a memória se abra como um livro e revele parte da história da nossa vida que afinal, ao contrário do pensamos, ainda está bem viva em nós. Foi o que me aconteceu esta semana com o convite do Luis Miguel para um treino na Serra da Carregueira - Sintra, local onde há 27 anos atrás, estive às ordens do Estado pelo período de 16 meses a cumprir o então "serviço militar obrigatório". Chamava-se na altura "Regimento de Infantaria nº 1", que incluía um dos chamados "Batalhões operacionais de primeira linha" do Exército português, o que significava, homens prontos para uma eventual intervenção militar imediata, isto apesar da guerra colonial ter acabado na altura havia 12 anos e não termos beligerância com nenhum outro país em redor.
O "da infantaria do primeiro", tinha as habituais companhias de "serviços" e "comando" no chamado "batalhão de serviços e comando" e o tal "batalhão operacional" constituído por duas companhias de "atiradores" e uma de "apoio a combate", a CAC, esta com sapadores, misseis anti-carro, pelotão de reconhecimento e morteiros pesados, onde eu me incluía na qualidade de "apontador". Como resultado desta exigência operacional, passei a maior parte do tempo de tropa "no mato", ou seja, a percorrer a Serra da Carregueira de lés e lés, quer em dias frios e húmidos como o do treino desta semana, quer em dias de calor tórrido, também frequentes nestas paragens no pino do verão. Usando o calão militar, posso dizer que passei de "maçarico" à "peluda" sempre a "arranhar", quer em exercícios tácticos, quer agarrado à G3 na solidão das guaritas, a guardar carreiras de tiro, paióis e outros redutos da "segurança nacional". Foram tempos difíceis para um jovem de 20 anos, até porque a rebeldia de então custou-me muitas reclusões disciplinares, nas quais fui obrigado a passar semanas fechado a olhar apenas esta serra e tipos de farda, e só não tiveram consequências mais graves, pela condescendência dos superiores ( enaltecendo outras qualidades como pessoa e militar). Junto a incrível sorte de não ser apanhado nas minhas fugas pela porta das traseiras do quartel, onde me desfardava nos pinhais da Carregueira para depois pedir boleia até Lisboa, passando por Belas e Amadora ou outros destinos incertos. O desejo de liberdade era tão grande, que corria por vezes este risco mesmo fardado, cruzando-me com as muitas patrulhas da Polícia Militar nas estações de comboio e dos barcos, mostrando "toques de ordem falsos que assinava em contraluz no vidro da caserna, imitando pelos originais, a assinatura do Comandante da Companhia. Faltava-me apenas o carimbo da companhia, mas esse estava guardado no "ultimo reduto", o gabinete do Sargento. Poucos conseguiram tê-lo nas mãos, muitos ficaram pelo caminho apanhados com a "boca na botija". Mais uma vez, a sorte ou a audácia protegeram-me de males maiores, fui algumas vezes interpelado pelas patrulhas, nunca apanhado. Depois de satisfeito o prazer de ver amigos, familiares e uma namorada afoita da altura, regressava pelo mesmo caminho já de noite, saltando muros ao abrigo da solidariedade de camaradas, também eles reclusos da obrigatoriedade de servir o Estado a troco de um prato de comida, treino para matar e umas migalhas que mal davam para os "quartos" de bilhete para ir "à terra", que para o tabaco tínhamos de mendigar e partilhar.
Ao contrário do Zé Sapateiro, do Badofo, do "Cara de Bolacha" do "Caralhinho de Bolso" e de muitos outros que gostava de recordar, até porque muito provavelmente já não pertencem a este mundo, a tropa não acentuou a minha incapacidade de lidar com a realidade, com o tal "sistema", antes o contrário, fez-me, um tanto ou quanto violentamente é certo, alinhar-me com este ( apesar de não ser nenhum copo-de-leite). Sobrevivi, vivi e 27 anos depois estou ali outra vez, mas só em corpo, porque a mente perdi-a por instantes neste passado que apesar de começar a ser "remoto", tem agora muitas páginas vivas para folhear, mas que deixo para que não doa, submergir novamente na memória funda.
Espero que o Luis Miguel me perdoe por não estar a falar dos maravilhosos 30km que fizemos a correr num belo, mas infelizmente,cada vez mais descuidado espaço. Onde entre as antigas azinhagas, ribeiros de água fresca, árvores centenárias, ruínas de velhas quintas, fontes, mães de água, aquedutos, lavadouros, se erguem agora campos de golfe, condomínios fechados, vivendas de gosto duvidoso mas de óbvio pretensiosismo e, pasme-se, prisões gigantescas onde estão encarceradas algumas "figuras públicas" e onde sobra muito espaço para outras que infernizam a vida diária de todos nós.
Para a posteridade, fica mais um momento de amizade, o travar conhecimento com mais uma "boa alma", a minha queda num esgoto pútrido, repetindo um gesto do passado, mas agora (in)voluntariamente, a banhoca forçada na ribeira do Jamor com 8º de temperatura ambiente ( ali de águas cristalinas) para que o cheiro que trazia no corpo não contaminasse o prazer da minha companhia, as lições de história do Luis, entre outras coisas para mais tarde recordar. Obrigado camaradas de hoje e, de ontem!
Abraços.
1 comentário:
As minhas "Memórias da Serra da Carregueira " estão bem mais longe que as suas.
Era então o Campo de Tiro da Serra da Carregueira (CTSC) de onde todos os anos saíam 4 escolas de recrutas para entrarem nas listas de mobilização. Como Furriel Miliciano de Infantaria estive lá colocado durante três anos (1966-69)tendo dado instrução a dez escolas de recrutas.
Foi tempo mais que suficiente para bater todo o terreno dos arredores em inúmeras saídas para instrução de campo e exercícios finais o que me permitiu conhecer as belezas rurais que menciona (e outras já desaparecidas como aquela que deu lugar à escola de polícia e as que refere).
Por isso o meu lamento, permita-me, é maior que o seu quanto ao desenvolvimento (?) de toda a zona envolvente ao quartel. Passo por aqueles sítios várias vezes e a memória das belezas naturais de outrora choca com a realidade actual. Posso dizer que conheço (ou conhecia?) aquela região como a palma das minhas mãos.
Tenho muitas muito boas recordações daquela unidade sem muros que nos fazia sentir que estávamos algures no mato. Como instrutor, a missão era ensinar algo que contribuísse para trazer de regresso aqueles recrutas que ao fim de nove semanas de instrução já saíam dali, na sua maioria, para as unidades mobilizadoras que os haviam de colocar bem no centro da guerra.
As suas aventuras de "desenfianço" continuaram como as de então, talvez mais facilitadas na altura, pois a unidade agora está mais murada e tem outras características (continuou-lhe a tradição!).
Cumprimentos
Victor Amorim
Victor_amorim@yahoo.com
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