Em 2007 além das aventuras desportivas, arriscava um texto pretensiosamente neo realista :-) Vá lá, tem pouco arrojo literário, mas está "legível" :-)
No momento em que estou a escrever este "post" os sintomas da gripe ainda estão muito presentes sobre a forma de espirros, dor de costas e de cabeça. Parece que fui atropelado por um camião, dói-me o corpo todo e... também um pouco a alma.
Na semana após a Maratona de Badajoz ainda mal refeito dos sintomas que me atormentaram e que me levaram a desistir desta, treinei muito pouco. No Sábado lá consegui fazer um treino de 2h20m e pensei que a semana seguinte seria muito melhor pois já me sentia “forte” novamente. Tirei até uns dias para estudar e pensei que aos finais da tarde conseguiria fazer o meu treino na Mata da Machada nas calmas. A minha pequenita doente desde a semana anterior foi piorando ao longo desta e acabou por não ir à escola e eu tive de ficar os "dias de férias" em cuidados. Sábado vou trabalhar, “escapo-me até ao universitário onde consigo nadar 40m mas já com sintomas de que alguma “coisa” estaria para vir. Domingo estava de rastos! Com arrepios de frio “arrasto-me” até à Escola onde habitualmente exerço o meu direito de voto. A partir daí foi o que já escrevi. Hoje gostava de andar um pouco vamos ver se consigo. Os 20km de Cascais no próximo Domingo vão ser um “calvário”.
O dia mais importante da semana foi o Domingo. Referendava-se algo de muito importante para a construção de uma sociedade que se deseja mais humanizada. Pena que quase 55% dos eleitores portugueses não tenha percebido isso. O aborto não é uma questão de fácil reflexão e decidir votando é mais difícil ainda, mas fugir sem tomar uma posição acerca de uma questão tão sensível para a sociedade portuguesa, é cobardia!
Para mim também não foi fácil. Primeiro porque não apanho comboios ideológicos só porque estes representam as minhas tendências políticas contra os que não as têm. Depois porque para além de todo o pragmatismo da política, existe um lado mais pessoal, mais moral talvez, direi mesmo, mais espiritual na avaliação destas questões e onde cruzamos (por vezes confusamente) as nossas experiências de socialização com a nossa personalidade, é isso que forma a “mundividência” (digo eu).
Procurei reflectir tudo isto e escrevi uma história ficcionada que facilmente se transpõe para a realidade social portuguesa ,a história da Cidália. Podia ser a menina da foto num “bidonville” nos arredores de Paris durante a emigração em massa para França nos anos 60-70, como a da Cidália no bairro da Musgueira que passarei de forma resumida a contar (para que quem a leia não perca a paciência com uma história tão comprida ainda por cima num blog que supostamente devia relatar os gostos e as práticas desportivas do autor).
Cidália nascera já em Lisboa sob o olhar benevolente do retrato de Cristo pendurado sobre a cabeceira da cama mal iluminado pela luz difusa de um candeeiro a petróleo. Fazia frio nesse dia e nem o forro de cartão que o pai pusera recentemente para tapar as largas frestas da tosca barraca pareciam impedir que ele se “colasse” às paredes daquele quarto tornando-o ainda mais sombrio. Cidália era a irmã mais nova de sete irmãos, a “ lisboeta” como diziam os pais. Estes tinham vindo no ano anterior de uma aldeia da Beira Baixa para fugir à miséria e à servidão da vida do campo ainda governado pelos chamados “Senhores”, proprietários de muitas e boas terras e donos do destino das almas que por ali habitavam em casas de pedra com animais pelo meio.
A viagem de comboio para Lisboa foi para todos um dia inesquecível, como tudo era diferente para além daquela paisagem árida que tinham deixado. Salazar morrera um ano antes, ainda morriam soldados em África e a Lisboa chegavam muitas gentes, do interior do país e das chamadas colónias. Arranjar casa não era fácil e emprego também, mas sempre se arranjavam uns biscates para “o mata-bicho e para o pão dos gaiatos” dizia o Pai. A barraca no bairro da Musgueira parecia ser o início de uma nova vida e a Mãe até costumava dizer “ se Deus quiser havemos de ter melhor”.
Cidália nasceu já o pai chegava a casa bêbado quase todos os dias e raro não era aquele em que “desancava” na Mãe. Os irmãos deambulavam pelas ruelas do bairro para fugir às sovas do pai e o mais velho já tinha sido preso por furto de um automóvel, “são as más companhias” diziam as vizinhas. D. Idalina pegou na bebé e disse “que bonita gaiata! Qual é o nome que lhe vais pôr Rosa?” “Cidália” disse a Mãe. Vai cantar o fado como a Cidália Moreira.
Os anos passaram, a Mãe de Cidália morrera durante mais um parto naquele quarto sobre o olhar benevolente de Cristo, a criança morrera também. Cidália passara a ser a mulher da casa. Nem à escola o Pai a deixava ir, dizia “ Mulher é para ficar em casa a cuidar dos Homens”. Cidália cresceu assim sem saber uma letra, tornou-se menina e moça e nela “alvorecia” um corpo de mulher. O Pai também reparara nisso e um dia entorpecido pelo vinho tentou abusar de Cidália amachucando o seu corpo com as mãos calosas e sujas. Ela fugiu cheia de medo e nunca mais voltou a casa. Arranjou emprego como criada de servir lá para os lados de Cascais na casa de uns “Senhores ricos”. D. Gertrudes gostava dela, era arrumada, limpa e trabalhadora. Morava num quartinho por baixo do vão das escadas, era o seu pequeno mundo decorado com duas bonecas, uma “sevilhana” em cima da cama oferecida pelo “padrinho”, o Sr. Carlos marido da D. Getrudes e outra já gasta que guardava dos seus tempos de criança e da qual desconhecia a origem pois tinha sido dada pelo Cazé o irmão mais velho quando ela fizera 10 anos.
O tempo passou e Cidália tornou-se uma bonita moça de 15 anos, muito obediente, uma "santinha" segundo as palavras da patroa. Ultimamente leva-lhe ao quarto todos os dias o almoço, pois D Gertrudes fora a Espanha numa viagem rápida fazer não sei o quê e voltara de lá doente da barriga. D. Getrudes acamada, chamava o padre quase todos os dias para se confessar e depois deste ir embora dizia a Cidália “com caridade e como missas deus irá perdoar-me todos os meus pecados”.
Um dia Cidália estava deitada entretida a pentear a “sevilhana” e o Sr. Carlos entrou e disse-lhe “ sabes, eu gosto muito de ti Cidália é como se fosses minha filha”. Cidália não sabia o que dizer e muito menos fazer quando o Sr. Carlos lhe começou a passar as mãos pelos cabelos, e pelas pernas.
Passaram três meses e começou a sentir enjoos e vómitos. D. Gerturdes chamou o médico que depressa fez o diagnóstico “ a Cidália está grávida”! “Grávida”?! Disse a D. Gertudes, “Como é que esta cadela que não saiu da minha casa está grávida?!” Que vá para o inferno! E Cidália foi para o inferno do seu antigo Bairro, grávida e órfã de Pai que morrera no ano antes sem que ela soubesse. Ficou na casa de um dos irmãos. A cunhada tratava-a mal e nem grávida a poupava das tarefas mais duras. “Pariu” o João em Agosto e foi a velha Idalina que o tirou cá para fora “ ah, rapariga, tens tanta força” disse-lhe.
Os anos passaram e Cidália, teve dois, três, quatro filhos e engravidara novamente. Não vivia com o Pai de nenhum deles. Os homens todos lhe prometeram futuros risonhos e Cidália cedia ao sonho daquelas palavras e ao doce toque dos afagos. Era uma mulher de 30 anos e perdera o brilho da juventude, tinha um ar cansado, parecia mais velha. Levantava-se todos os dias às 5h da manhã para ir fazer limpezas, voltava às 11h e ía outra vez às 17h. O filho mais velho já lhe dava chatices e a Polícia já lá tinha ido a casa levá-lo por diversas vezes. Cidália, afagava-lhe os cabelos e dizia-lhe “ porque fazes isto João, a Mãe gosta tanto de ti”. Mas João era um miúdo rebelde que fugia da escola para ir jogar à bola nos labirintos do bairro e quando tinha fome reunia os amigos e dizia “ vamos fanar umas coisas lá no Pingo Doce?!”
Cidália não podia ter mais filhos. Não conseguia alimentar todos. Quando foi falar com a assistente social para que a pudessem ajudar a cuidar da mais nova esta respondeu-lhe “ porque é que a menina não para de parir! Irra parece um bicho!” Cidália saiu de lá desesperada, precisava de encontrar uma solução. Encontrou na rua a D. Idalina e perguntou-lhe “ Mãe" tratava-a assim por carinho, "preciso de desmanchar isto”. “Oh filha não faças isso”! Tem de ser Mãe, tem de ser,ajude-me!” D. Idalina indicou-lhe um “abortadeira” que morava na zona sul numa casa de tijolo e reboco pintada de um bonito "azul bébé". O marido tinha um bom carro e havia quem dissesse que tinham umas casas lá para o centro de Lisboa. Dizia-se à boca cheia no bairro que ganhava muito dinheiro com os “desmanchamentos”.
Naquele dia não foi trabalhar e foi fazer o “desmancho”. Regressou a casa cheia de dores, a “abortadeira” não lhe dera comprimidos pois ela não tinha dinheiro para os pagar. Três dias em casa na cama a latejar de febre e foi a D. Idalina que chamou uma ambulância quando a viu naquele estado já ela delirava e dizia coisas esquisitas. Esteve mais dois dias no hospital e morreu. Na sua campa rasa está um jarra com flores de plástico e uma “sevilhana” ressequida pelo sol.A Cidália é uma ficção. Mas será que não existem por aí muitas Cidálias? Por eu saber que sim, votei SIM.
Desculpem qualquer coisinha, da próxima vez falarei das minhas aventuras desportivas. Resta-me recuperar desta “moenga”.
Cidália nascera já em Lisboa sob o olhar benevolente do retrato de Cristo pendurado sobre a cabeceira da cama mal iluminado pela luz difusa de um candeeiro a petróleo. Fazia frio nesse dia e nem o forro de cartão que o pai pusera recentemente para tapar as largas frestas da tosca barraca pareciam impedir que ele se “colasse” às paredes daquele quarto tornando-o ainda mais sombrio. Cidália era a irmã mais nova de sete irmãos, a “ lisboeta” como diziam os pais. Estes tinham vindo no ano anterior de uma aldeia da Beira Baixa para fugir à miséria e à servidão da vida do campo ainda governado pelos chamados “Senhores”, proprietários de muitas e boas terras e donos do destino das almas que por ali habitavam em casas de pedra com animais pelo meio.
A viagem de comboio para Lisboa foi para todos um dia inesquecível, como tudo era diferente para além daquela paisagem árida que tinham deixado. Salazar morrera um ano antes, ainda morriam soldados em África e a Lisboa chegavam muitas gentes, do interior do país e das chamadas colónias. Arranjar casa não era fácil e emprego também, mas sempre se arranjavam uns biscates para “o mata-bicho e para o pão dos gaiatos” dizia o Pai. A barraca no bairro da Musgueira parecia ser o início de uma nova vida e a Mãe até costumava dizer “ se Deus quiser havemos de ter melhor”.
Cidália nasceu já o pai chegava a casa bêbado quase todos os dias e raro não era aquele em que “desancava” na Mãe. Os irmãos deambulavam pelas ruelas do bairro para fugir às sovas do pai e o mais velho já tinha sido preso por furto de um automóvel, “são as más companhias” diziam as vizinhas. D. Idalina pegou na bebé e disse “que bonita gaiata! Qual é o nome que lhe vais pôr Rosa?” “Cidália” disse a Mãe. Vai cantar o fado como a Cidália Moreira.
Os anos passaram, a Mãe de Cidália morrera durante mais um parto naquele quarto sobre o olhar benevolente de Cristo, a criança morrera também. Cidália passara a ser a mulher da casa. Nem à escola o Pai a deixava ir, dizia “ Mulher é para ficar em casa a cuidar dos Homens”. Cidália cresceu assim sem saber uma letra, tornou-se menina e moça e nela “alvorecia” um corpo de mulher. O Pai também reparara nisso e um dia entorpecido pelo vinho tentou abusar de Cidália amachucando o seu corpo com as mãos calosas e sujas. Ela fugiu cheia de medo e nunca mais voltou a casa. Arranjou emprego como criada de servir lá para os lados de Cascais na casa de uns “Senhores ricos”. D. Gertrudes gostava dela, era arrumada, limpa e trabalhadora. Morava num quartinho por baixo do vão das escadas, era o seu pequeno mundo decorado com duas bonecas, uma “sevilhana” em cima da cama oferecida pelo “padrinho”, o Sr. Carlos marido da D. Getrudes e outra já gasta que guardava dos seus tempos de criança e da qual desconhecia a origem pois tinha sido dada pelo Cazé o irmão mais velho quando ela fizera 10 anos.
O tempo passou e Cidália tornou-se uma bonita moça de 15 anos, muito obediente, uma "santinha" segundo as palavras da patroa. Ultimamente leva-lhe ao quarto todos os dias o almoço, pois D Gertrudes fora a Espanha numa viagem rápida fazer não sei o quê e voltara de lá doente da barriga. D. Getrudes acamada, chamava o padre quase todos os dias para se confessar e depois deste ir embora dizia a Cidália “com caridade e como missas deus irá perdoar-me todos os meus pecados”.
Um dia Cidália estava deitada entretida a pentear a “sevilhana” e o Sr. Carlos entrou e disse-lhe “ sabes, eu gosto muito de ti Cidália é como se fosses minha filha”. Cidália não sabia o que dizer e muito menos fazer quando o Sr. Carlos lhe começou a passar as mãos pelos cabelos, e pelas pernas.
Passaram três meses e começou a sentir enjoos e vómitos. D. Gerturdes chamou o médico que depressa fez o diagnóstico “ a Cidália está grávida”! “Grávida”?! Disse a D. Gertudes, “Como é que esta cadela que não saiu da minha casa está grávida?!” Que vá para o inferno! E Cidália foi para o inferno do seu antigo Bairro, grávida e órfã de Pai que morrera no ano antes sem que ela soubesse. Ficou na casa de um dos irmãos. A cunhada tratava-a mal e nem grávida a poupava das tarefas mais duras. “Pariu” o João em Agosto e foi a velha Idalina que o tirou cá para fora “ ah, rapariga, tens tanta força” disse-lhe.
Os anos passaram e Cidália, teve dois, três, quatro filhos e engravidara novamente. Não vivia com o Pai de nenhum deles. Os homens todos lhe prometeram futuros risonhos e Cidália cedia ao sonho daquelas palavras e ao doce toque dos afagos. Era uma mulher de 30 anos e perdera o brilho da juventude, tinha um ar cansado, parecia mais velha. Levantava-se todos os dias às 5h da manhã para ir fazer limpezas, voltava às 11h e ía outra vez às 17h. O filho mais velho já lhe dava chatices e a Polícia já lá tinha ido a casa levá-lo por diversas vezes. Cidália, afagava-lhe os cabelos e dizia-lhe “ porque fazes isto João, a Mãe gosta tanto de ti”. Mas João era um miúdo rebelde que fugia da escola para ir jogar à bola nos labirintos do bairro e quando tinha fome reunia os amigos e dizia “ vamos fanar umas coisas lá no Pingo Doce?!”
Cidália não podia ter mais filhos. Não conseguia alimentar todos. Quando foi falar com a assistente social para que a pudessem ajudar a cuidar da mais nova esta respondeu-lhe “ porque é que a menina não para de parir! Irra parece um bicho!” Cidália saiu de lá desesperada, precisava de encontrar uma solução. Encontrou na rua a D. Idalina e perguntou-lhe “ Mãe" tratava-a assim por carinho, "preciso de desmanchar isto”. “Oh filha não faças isso”! Tem de ser Mãe, tem de ser,ajude-me!” D. Idalina indicou-lhe um “abortadeira” que morava na zona sul numa casa de tijolo e reboco pintada de um bonito "azul bébé". O marido tinha um bom carro e havia quem dissesse que tinham umas casas lá para o centro de Lisboa. Dizia-se à boca cheia no bairro que ganhava muito dinheiro com os “desmanchamentos”.
Naquele dia não foi trabalhar e foi fazer o “desmancho”. Regressou a casa cheia de dores, a “abortadeira” não lhe dera comprimidos pois ela não tinha dinheiro para os pagar. Três dias em casa na cama a latejar de febre e foi a D. Idalina que chamou uma ambulância quando a viu naquele estado já ela delirava e dizia coisas esquisitas. Esteve mais dois dias no hospital e morreu. Na sua campa rasa está um jarra com flores de plástico e uma “sevilhana” ressequida pelo sol.A Cidália é uma ficção. Mas será que não existem por aí muitas Cidálias? Por eu saber que sim, votei SIM.
Desculpem qualquer coisinha, da próxima vez falarei das minhas aventuras desportivas. Resta-me recuperar desta “moenga”.
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Posted By Zen to O Homem da Maratona at 2/13/2007 03:57:00 AM
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